domingo, 7 de março de 2010

Uma só vez e doeria sempre.

Eram onze e trinta da manhã. Não tinha certeza da hora, não tinha certeza se era cedo ou tarde demais pra levantar, ainda assim, Bia decidiu botar os dois pés pra fora da cama, respirar fundo, esticar os braços e sair da cama num pulo súbito, ainda com os olhos fechados, na esperança de que ao abrir estivesse diferente, sabia que não estaria. Sua coragem para enfrentear o mundo foi se deteriorando ao chegar no banheiro, escovar os dentes, lavar o rosto, se olhar no espelho e se dirigir ao café da manhã, a cada minuto se arrependia ter saído da cama, mas não tinha outra maneira a não ser viver. E tinha que começar logo, por algum lugar. Arrumou a casa até que perdesse qualquer noção de hora, abriu sua gaveta e se propôs a separar as roupas em cores e jogar fora velhas cartas de amor que não significavam mais nada além de solidão. Não tinha expectativas de sair de casa, não sabia mais conviver com as pessoas, demonstrar interesses, ter conversas que ninguém mais entendia e figir rir com tolices. E tinha a certeza de que ninguém a tiraria de casa, como nas outras vezes, durante a semana, pensou que se morresse, ningupém ficaria sabendo a não ser pelo mal cheiro ou algum possível vizinho com sua velha mania de tomar conta da vida alheia ou até mesmo o sindico cobrando aluguel, mas tinha a impressão de que seria de repente e em alguns desses acontecimentos extraordinários, até que sua mente parou de seguir essa lógica, algum barulho longe do quarto onde estava chamou sua atenção, por um minuto chegou a achar que era coisa da sua cabeça já confusa, cansada e desesperada. Só que o barulho era real, saiu apressada pelo corredor até chegar a sala e deixou o telefone tocar mais um pouco, só para não parecer tão desesperador assim atender logo. Do outro lado da linha, um homem com uma voz encantadora que não ouvia fazia tempo, tanto tempo que a saudade não tardou em reconhecer:

-Alô?
-Alô!... Pedro?
-Sim, sou eu.
-Quanto tempo, não sabia que ainda tinha o meu número na sua agenda, você sumiu e eu procurei tanto notícias suas, lutei durante um bom tempo pra assimilar a sua partida, eu não sei quando... - foi interrompida pela voz do outro lado.
-Bia, não tem como a gente se encontrar hoje e esclarecer de uma vez por todas o porquê de tudo isso, tem tanta coisa que não ficou muito clara desde a última vez que...você sabe.
-Sim, eu sei. Disse com a voz quase sumindo. Se recompôs e afirmou que seria possível o encontro.
-Naquele mesmo café às 19 horas? Não sei se ainda lembra.
-Claro, claro que sim, estarei lá.

Sem conseguir dizer mais nada, Bia desligou o telefone e ainda conseguiu ouvir uma despedida e olhou o relógio, sabia que não tinha muito tempo pra se arrumar, ainda confusa, se dirigiu ao chuveiro e sem muita demora, botou a segunda roupa que olhou no armário, fez uma maquiagem simples pra disfarçar as olheiras de noites anteriores, de resto, seus quase vinte e dois anos permitia sair de casa sem qualquer intervenção estética. O caminho até a cafeteria não era longe, porém pensamentos sobre o passado ocorreram e tudo ao mesmo tempo, quase se esquecendo de respirar, recuperando o fôlego, repetia que aquele homem era o amor de sua vida e que finalmente teria respostas pra todas as suas perguntas e aflições durante o tempo em que Pedro fora embora.
Chegando ao local marcado, viu que ele ainda não havia chegado, o que fez com que seu coração quase não aguentasse numa mistura de saudade, desespero, tristeza, tantos sentimentos que a fizeram ter vontade de levantar e sair correndo, o que a impediu foi vê-lo andando em direção a sua mesa, reparou que sua beleza ainda continuava com determinadas mudanças, seus braços estavam mais definidos, seu cabelo muito bem cortado e a barba feita, o resto continuava o mesmo, pelo menos, fisicamente.

-Olá, Beatriz.
-Olá, Pedro. Sua vontade era abraça-lo e dizer tanta coisa que se conteve em ficar quieta o admirando.
-Posso me sentar?
-É claro.
-Você pediu alguma coisa pra beber?
-Não e não quero nada, nada desse lugar, quando é que ficamos tão cordiais um com o outro? Estou esperando você me dizer, me dar explicações das vezes em que me fez morrer todos os dias esperando uma ligação sua, qualquer notícia que me fizesse sorrir outra vez e o que pretende quando me contar tudo? Fingir que nada aconteceu ou chegarmos a um denominador comum independente do que tem pra me dizer?
-Bom, Beatriz, a verdade é que eu voltei pela necessidade de estar com você, saber de você, não aguento mais os dias dentro daquele apartamento tentando te tirar da minha cabeça e fingir que está tudo bem enquanto sabemos que não está. Sei que espera explicações da minha partida, não, eu não tive outros amores, não tive outros sorrisos, nada disso, mas eu não suportava mais a gente da maneira que estava, sempre brigando, sempre ofendendo e em determinado ponto, ficar longe de você ficou menos doloroso do que as ofensas e impressões que tinhamos um do outro, esperei você se desfazer da sua arma defensiva e desses preconceitos em relação a minha pessoa. E estar aqui é algum ponto que mostro em que me deixei levar por uma coisa tola chamada saudade.

Com lágrimas nos olhos e engolindo o choro, Bia parou um minuto e respondeu:

-Pedro, eu não sei em que tempo a gente se perdeu um do outro, vivemos momentos em que eu não vou me esquecer nunca, mas você tinha esquecido, você não se lembra do começo, nos nossos encontros sempre gurdava com você algum magoa que não expunha quando devia, quando se calava e ofendia por estar machucado, eu percebia isso e ficava calada muita das vezes, porém, existiam dias em que tantos adjetivos que me dava me machucava e eu passava noites chorando escondida, pra no dia seguinte estar nova, até você começar tudo de novo, eu não me aguentava. E você nunca esteve presente, eu me entregava pra você da maneira que sabia, de corpo, alma e sentimento inteiros, mas você recusava. Sua vida estava fechada pra qualquer pessoa e a minha, parada desde a última vez que te via.

Prestes a dizer alguma coisa, Pedro foi interrompido pelo garçom que com um bloco na mão anotaria seus pedidos, foi então que resolveu pedir um Cappuccino e uma água para Bia. Aproveitou para dar uma olhada no movimento ao seu redor, viu uma moça sozinha com um livro na mão e comentou com Bia quando viu aquele livro pela primeira vez:

-Lembra de quando eu li aquele livro?
-Lembro, fui eu que te emprestei, insisti tanto pra você ler que acabou tendo que ler só pra eu te deixar em paz, né?

O tom da conversa agora era mais descontraído, sem esquecer do motivo principal que os levaram àquele lugar. Bia substituiu a contenção das lágrimas por um sorriso bobo de lembrança de boas épocas que não voltariam.

-Eu li, você realmente insistiu muito, mas tinha razão, eu era mesmo muito teimoso em relação a novas opiniões e uma das melhores coisas naquela época foi ter lido esse livro, não me esqueço até hoje e comprei uma edição pra tê-lo em casa, não sei se te contei isso.
-Não me contou, mas fico feliz em saber que algumas marcas minhas ficaram em você. - Seu sorriso agora era de constrangimento por ter dito tamanha bobagem.
Num tom um pouco mais sério que antes, Pedro resolveu responder, mas ainda assim continuava simpático:
-Muitas marcas suas ficaram em mim, Beatriz, acredito que o nosso encontro foi sempre mais uma questão de tempo que oportunidade, você era minha, assim como me entreguei a você, sinto como quase uma certeza de que se não tivesse sido naquela época, teriamos nos encontrado de qualquer outra forma, seu sorriso iluminava uma parte em mim que eu mesmo desconhecia, entretanto, você parecia ter uma espécie de mapa em que estava muito exposto e claro tudo que eu era. Era assim que eu me sentia perto de você, exposto, mas não era algo ruim, entende? Até que o que éramos começou a desandar, deixamos de ser a necessidade um do o outro sem qualquer motivo aparente, talvez porque quisemos dar nome ao que já tínhamos um do outro e rotular qualquer coisa que não pode ter nome por não se contem em tempo e espaço dessa maneira é um erro, erro esse que custou a gente.

Beatriz quis chorar, porém não conseguiu mais do que olhar em outra direção que não os olhos dele, não queria deixar evidente vestígios de tristeza perante aquele homem que tinha sido seu, na qual, suas mãos se continham apertadas na beirada da mesa pra não sucumbir à vontade de tocá-lo. Tocar uma parte do corpo dele teria sido crucial na sua decisão. Enquanto Pedro parecia seguro de si, controlador de suas ações, sentimentos e outra emoção que poderia trair o momento de suas palavras. Então, Betriz continuou:

-Você tem razão em determinados pontos, só quero que saiba o quanto de amor eu tive por você, o quanto meu coração era só seu e faria tudo que tivesse me pedido, sem exitar, eu nunca esqueci aquele beijo, mas pra mim, não era a situação mais importante entre a gente, não era uma necessidade como a eu tinha de estar ao seu lado e confesso que abdiquei de todas as vontades involuntárias do meu corpo, quando a gente era só carne, pra continuar do seu lado, da maneira que quisesse. Você me quis tanto, eu te quis tanto, cada um a sua maneira, mas nos completavamos por essas ajustaveis diferenças. É disso que sinto falta. Tenho me encontrado num estágio de recomposição da vida, talvez porque durante muito tempo, eu tenha desaprendido a ser sozinha, acordar ao nada e não ter pra quem me entregar.

Nesse instante, o silêncio se fez tão presente quanto as pessoas que estavam entrando no ambiente pequeno que tinha certo charme, que em outros tempos, serviu de poesia para aqueles dois que tanto se amavam, amam e amariam. Foi quando olharam pela janela e perceberam que estava chovendo, sorriram de maneira independente, porém entenderam que naquele momento a cena pareceu um tanto noir para o que estavam vivenciando.
Beatriz tomou a palavra, decidiu pedir a conta e tentar encerrar um assunto que não teria fim não importava o caminho que fosse, ainda teriam magoas ou novas marcas, mas pertenceriam um do outro de qualquer maneira, seriam impulsionados um pelo outro, em situações adversas que fosse, não tinha mais jeito, seu encontro era inevitável, mas se perder não era opcional, estariam interligados por um tempo indefinido por não terem sido qualquer outra coisa ou por terem sido demais. Pedro se ofereceu a pagar a conta, Beatriz tão independente e orgulhosa de escolhas aheias, pagou a sua parte, teria pagado a dele também se ele não tivesse a impedido. Foi então que Pedro disse:

-Então, é isso?
-Eu não sei, quando você me ligou fez ressurgir em mim uma alegria que eu desconhecia faz tempos, o que há entre nós vai matar a gente por não ter definições claras quanto ao que queremos, mas é preciso seguir em frente, não posso ficar à mercê de ligações inesperadas ou encontros desesperados de saudade, daqui pra frente, seremos essa incognita porque foi dessa maneira que aprendemos a sobreviver, entre nós não existe certo e errado, acredito agora que a culpa nem tenha sido nossa, não soubemos nos moldar ao tempo real dos acontecimentos, nos aniquilamos quando deixamos o de fora fazer parte do de dentro e intervenções terceiras, não podemos voltar atrás. Ficamos jogados a esmo do que sentimentos, se a vontade minha for enorme de você, eu ligo, procuro, suplico, assim como acredito que seja com você e mais nada.

Antes que Pedro pudesse dizer mais alguma outra frase em relação ao passado, futuro ou presente daqueles dois, Bia se levantou da mesa e afirmou que iria para casa. Ele se ofereceu para leva-la e ela concordou, o que fez os dois abrirem um sorriso por perceberem que haviam aberto a guarda, nada de teimosia e orgulho naquele momento tão frágil. Ele a deixou na porta de casa e esperou que entrasse, não esperou nenhum convite por parte dela para entrar, sabia que não faria o menor sentido pelo que foi dito momentos atrás, ela entrou e ele foi andando de volta até o elevador, só não imaginava estar sendo observado no olho mágico da porta branca na qual Beatriz se apoiava com as pontas dos pés, sentia seu amor ir embora.
No momento exato em que ele apertou o botão que daria para a saída do prédio, Beatriz saiu correndo pelas escadas, passou por vizinhos detestaveis e nem os cumprimentou pelo tamanho da pressa, algum comentário ordinário a fez mandar todos eles se foderem, dessa maneira mesmo, com a boca cheia, chegou a tempo de alcançá-lo na portaria, gritou seu nome e no momento em que se virou, chegou perto do seu rosto e lhe deu um beijo como nas únicas três vezes em que estiveram tão íntimos desse jeito e sem exitar, disse:

-Fica, por favor.

Só que quando abriu os olhos, ainda estava de costas pra porta segurando um retrato antigo depois de saber que ele tinha ido embora e sem a certeza de que voltaria.

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